domingo, 28 de dezembro de 2008

Aprendi com minha mae


RITOS DE PASSAGEM

Filha de imigrante libanês casado com brasileira, minha mãe Teresa ficou orfã aos doze anos. Era a quinta filha das sete mulheres que sobreviveram aos tempos de dificuldade em Itambacuri. Sua mãe – vovó Mariquinha - se foi aos 42 anos, vitimada por um câncer, e deixou o marido - vovô Miguel - com a incumbência de criar as meninas, com idades entre sete e dezesseis anos. As três mais velhas foram colocadas num colégio interno enquanto ele pelejava com as quatro menores, contando apenas com a ajuda da velha empregada Patú.
Mamãe cresceu, ficou uma moça linda e vaidosa, noivou e foi abandonada pelo noivo, noivou de novo e se casou com papai, um velho amigo de infância. Já estava com 28 anos e com medo de ficar no “barricão”, então casou.
Teve três filhos, um menino e duas meninas.
Resolveu estudar. Formou-se professora, achou pouco; fez faculdade de pedagogia, achou pouco; aventurou-se aos trancos e barrancos em cursos de especialização em outras cidades, e passava as férias viajando e estudando; foi professora reconhecida, diretora de escola, supervisora, inspetora. Aposentou-se depois de trabalhar ininterruptamente por mais de quarenta anos.
A filha mais velha – eu – nunca correspondeu aos projetos de primogênita libanesa: se vestir como uma princesa - os vestidos de casa-de-abelha nunca a encantaram; brincar de casinha e de bonecas; aprender a tocar piano; estudar e se graduar em cursos socialmente valiosos – medicina, direito, engenharia, odontologia; demorar a casar pra antes aproveitar bem em cultura e viagens – e depois de casada ficar com o mesmo homem por toda a vida; ser famosa e admirada por sua pura competência...
Fiz tudo diferente. Só gostava de usar saias ciganas; brincava de bolinhas de gude, finca e pipa com os moleques na rua; abandonei as aulas de piano; namorei cedo, casei-me ainda menina, tive 4 filhos e fiz a opção de não trabalhar fora pra cuidar deles; nunca dei importância a diploma; não fiquei famosa; não fiquei casada pra vida toda com o pai de meus filhos; casei de novo com um professor de teatro que nunca usou terno – e ela ama homem de terno; escolhi como profissão a arte de criar com as mãos em meu atelier – sem aposentadoria, férias ou licenças remuneradas.
Tudo errado, não é? Não, claro que não. Sou muito feliz com minhas escolhas, e sei que mamãe também fica feliz me vendo assim.
Ela não sabe ainda, mas em cada tempo de minha vida o que me ensinou foi guia pra que eu acertasse ou, ao menos, tentasse acertar; me deu coragem pra enfrentar os riscos sabendo que seu colo aconchegante estaria sempre quentinho pra mim, se alguma coisa desse errada.
Aprendi com ela a desobedecer, a não me sujeitar às adversidades e continuar celebrando a vida.
Lembro-me com riqueza de detalhes dos natais – a árvore foi exatamente igual durante toda a minha infância, um galho seco pintado com tinta-a-óleo preta, cheio de bolinhas de isopor coladas na tinta ainda fresca, que imagino representassem a neve - os presentes iguais em cores diferentes pra mim e Dalila, minha prima, que passava todas as férias conosco, porque na casa dela não se comemorava nada; os aniversários com enfeites da mesa feitos de isopor e os docinhos coloridos de Satut, grande amiga e quituteira de mão-cheia, regados a ponche de groselha com ½ garrafa de guaraná pra enganar a falta de grana; as semanas inteiras com costureira em casa pra fazer as roupas que usaria na festa de agosto, tudo novo; a primeira comunhão; as formaturas da pré-escola ao curso normal e de contabilidade, onde todas as festas de turma eram em nossa casa; a organização do circo em nosso quintal, que da montagem da tenda até a bilheteria contavam com a mão carinhosa dela; as festas juninas com canjica e quentão de sabores inesquecíveis; a partilha dos animais caçados por papai – capivaras, jacarés, pacas, tatus, peixes - que era feita na calçada do armazém pra vizinhança toda; as fantasias de carnaval prontas pra ganhar concurso...
Em nada do que aconteceu em minha vida faltou mamãe. Sempre ela lá, presente, um grande presente que a vida me deu.
Aprendi que os ritos de passagem importam em tudo o que teremos adiante; o brilho da comemoracão se mantém na sequencia dos fatos posteriores a ela, e só podem nos trazer alegria e boas lembranças. Mostro isto todo o tempo aos meus filhos, marido, amigos, quando em nossa casa é sempre uma festa. Os aniversários, natais, dias dos pais e das mães, páscoa, formaturas, tudo com muita alegria.
Alegria também aprendi com minha mãe, embora ela sempre tenha me comparado a papai – do que me orgulho muito. Sou sim, bem parecida com ele, mas a ela devo tanto aprendizado do que realmente importa.